O DIA QUE MUDOU AS NOSSAS VIDAS
Eram 10h00 e eu estava no banho quando ouvi a Dr.ª Joana a perguntar a Matilde pela Mãe.- "Está a tomar banho" - disse a Matilde e eu ouvia a conversa com um sorriso pensando que a minha filha era mesmo uma despachada, sempre de resposta pronta.
Acabei de tomar banho com alguma pressa, pois sabia quererem falar comigo sobre o resultado dos exames que a Matilde tinha feito no dia anterior, 2 TAC's (uma con contraste) e uma Eco abdominal. Eu própria estava ansiosa por ouvir os resultados e perceber se já existia diagnóstico.
Íamos no 8 dia consecutivo de internamento sem respostas. Análises todos os dias, já tinha feito 2 eco's ao abdómen, um TAC e eco à perna esquerda que lhe doía (e coxeava) sem resultados. Todos os exames que eram pedidos vinham negativos e continuávamos a escalar a pirâmide das doenças prováveis, as mais simples e mais fáceis de tratar já tinham sido descartadas, restavam-nos as outras, aquelas que desconhecíamos existir e aquelas que sabemos existir mas que não cremos que nos batam à porta.
Entrei no quarto e ainda estava a secar o cabelo, a Dr.ª Joana e outra médica hematologista dirigiram-se a mim e perguntaram se podíamos falar na salinha pequena. Com um sorriso pronto, afinal a Matilde estava ao meu lado, lhes disse que sim.
"Está tudo lixado Marta!!"
Assim que saímos a porta do quarto uma delas pergunta se o Miguel vai demorar muito a chegar e se preferia esperar por ele? Não quero esperar, depois ligo para ele vir, já que ele só costumava vir pela hora do almoço.
"Agora é que está mesmo tudo lixado mas com F e CAPS LOCK"
Sentámos-nos na pequena sala as três e primeiro falou a hematologista. Diz que fizeram todas as análises prováveis e que as mesmas vieram negativas, que os exames de ontem tinham revelado 3 massas suspeitas na barriga da Matilde e que se previam que fossem tumurais, más, neoplásicas. Que lamentavam, mas que era comum até aos 5 anos, que iríamos ser bem acompanhados. Disse ainda que tínhamos consulta no dia seguinte no IPO para fazer mais exames e perceber concretamente do que estaríamos a falar. Ainda perguntaram se queríamos dormir lá e amanhã ir directamente para o IPO ou se preferíamos ir dormir a casa. Como é óbvio: CASA!!!!!
Sorri, lembro-me de sorrir muito para elas e dizer que sim a tudo, já não estava a ouvir. Pedi para ir apanhar ar, precisava desesperadamente disso.
Percebi, assim que sai daquela sala, que já todo o serviço sabia da condição delicada em que se encontrava a minha filha, soube isso pela pena que vi nos olhos daqueles que estavam no corredor à espera que saísse, soube também assim que entrei no quarto e vi a Matilde estrategicamente colocada de costas para mim a brincar com a auxiliar e um voluntário. Sentei-me, calcei os ténis, sem conseguir sequer olhar a minha filha e sai com as lágrimas já a descer pela cara.
Lembro-me também que fiz o corredor com os olhos no chão e assim que sai da porta do serviço o meu primeiro pensamento foi: "Deus dá as batalhas aos mais fortes, por isso eu sei que vou ter força, mas ajuda a minha cabeça a ficar bem, que vou precisar tanto dela, eu aguento, mas ajuda-me nesta parte por favor Meu Deus".
Cheguei à rua e sentia-me uma bomba, precisava de explodir. Tinha que avisar o Miguel, mas não iria fazê-lo antes de conseguir libertar-me de alguma tensão, não era justo para ele que estava descansado a trabalhar, julgando estar tudo bem com a sua filha.
"Marta, a quem vais ligar primeiro?! Não pode ser à Mãe nem ao Pai, ainda não estou suficientemente forte, não pode ser aos avós da Matilde que a avó Eduarda não vai aguentar. A Andreia vai desabar comigo, vou desfazê-la em três tempos se lhe ligar neste grau de ansiedade e a Rita está no novo trabalho dela não tenho o direito de a destabilizar. A quem...?"
Precisava de alguém que me dê força, que perceba o que sinto, um colo onde possa desabar, chorar e principalmente alguém que me dê a força que vou precisar para lidar com isto daqui para a frente, a força que eu não estou a ter. E só de uma pessoa me lembrei: Ana Santos. Foi muito injusto para ela receber esta notícia em primeira mão, comigo feita em pedaços, mas sabia ser ela a pessoa perfeita para em poucos minutos me reconstruir com a sua força e palavras sabias, com a sua destreza. Precisava tanto de colo!!
Liguei, atendeu com a sua sempre doce voz:
"Então minha querida?" - e já não me lembro do resto porque desabei, soluçava tanto...
"Oh Ana..." - dizia eu
"Acalma-te minha querida e diz-me o que se passa!"
"Oh Ana..." - voltava eu a dizer enquanto soluçava
"Mas espera... Vamos por partes. É a Matilde?"
"A Matilde tem um cancro" - Verbalizei a palavra, logo pelo nome, sem medos, com coragem!
Aí, nesse momento que verbalizei, desabamos as duas, mães e conscientes da dor que este tipo de notícia provoca. Choramos juntas com suspiros de dor e palavras perdidas nos soluços.
A Ana esteve junto a mim nesse telefonema até eu precisar, até eu estar de novo colada, até ter reunido novamente as forças que tinha perdido. Até voltar a ser eu, a Marta destemida, lutadora e confiante, optimista e perseverante, com garra e cabeça levantada.
A Ana não sabe, mas nesse dia tornou-se numa das pessoas mais importantes da minha vida, foi a pessoa que me reconstruíu e me encheu de força. Foi o único colo, onde me permiti chorar como chorei, onde me permiti perder as forças, onde soltei os primeiros pensamentos sobre este bastardo!!
No momento a seguir, liguei ao Miguel.
Respirei fundo demasiadas vezes e chamou. Atendeu.
"Estás bem amor?" - perguntei docemente reprimido as lágrimas até a exaustão - "Onde estás? As médicas precisam de falar connosco à cerca da Matilde, devias cá vir."
O Miguel é brincalhão e infantil por natureza, mas ele percebeu.
"Uiiiii, tu já sabes o que é?" - perguntou ele com voz endurecida
"Sim" - não menti
"É grave?"
"Sim" - não voltei a mentir
"A caminho"
Ainda fiz mais um telefonema, para a nossa prima Pipas que também é médica e precisava de orientação clínica, no fundo alguém que me dissesse que o que a Matilde tinha não era grave. Não foi o caso. Falámos um pouco e perguntou se eu queria que ela lá fosse, disse que não, estava grávida de muitas semanas e não a queria sujeitar a esse sofrimento.
Voltei a respirar fundo, porque o pior momento de todos estava para vir. Enfrentar e olhar nos olhos da minha filha sem demonstrar toda a tristeza que sentia...
Subi, voltei a fazer o corredor com os olhos postos no chão, penso que 1 ou 2 pessoas me abordaram mas não sei quem foram ou que disseram. A minha cabeça estava longe.
Entrei no quarto e ela não estava, estava na sala lúdica.
Assim que me viu mostrou um belo sorriso que fez levantar um pouco da fita cola que o meu coração já tinha, a que a Ana lhe tinha posto.
Fomos para o quarto e lá lhe disse que tinha uma boa notícia para ela, íamos para casa. Íamos dormir ao pé do Pai, do mano e do seu Picanha.
Ficou radiante! E ainda acrescentei, amanhã vamos conhecer um novo hospital, vai ter muitos jogos e brincadeiras e a Mãe vai estar sempre sempre contigo.
Incrível como não conseguia olhar muito tempo nos seus olhos ingénuos e esconder-lhe que ela tinha um Cancro. Mas era informação a mais para ela, ela não sabia o que isso era e que implicações iria ter. Sentia que a estava a enganar, que não estava a ser honesta com ela.
A Matilde tem 4 anos, mas é muito despachada, muito madura e assimila as coisas com muita facilidade, gosta muito de entender o porquê das coisas e a nossa relação, tal como com o Duarte, sempre foi baseada na verdade absoluta. Nunca escondi, nunca omiti ou menti sobre qualquer tema, explicando muito o que se iria passar, como e porquê. Para que confiem sempre na Mãe deles e saibam que é um porto seguro.
Chegou o Pai. Branco, suado, com o olhar nervoso e ansioso por saber. Sentou-se no cadeirão e ficou a olhar para mim sem reacção. A Matilde não obteve reacção do Pai como era habitual, portanto ignorou-o.
"É leucemia?" - Perguntou ele
"Queres que sejam as médicas a dizer-te ou queres saber já por mim?" - tinha urgência em saber, tal como eu.
"A Matilde tem cancro" - disse-lhe claramente e em tom baixo, sentada na sua cama com ela nas minhas costas a recortar folhas.
"Estamos lixados Marta" - disse ele completamente destruído.
"Pois estamos" - e como não conseguia segurar mais as lágrimas levantei-me para chamar as médicas.
Falamos mais uma vez na sala e assim que saímos eu e o Miguel descemos para apanhar ar e falarmos abertamente.
Não falamos muito. Ficamos especados de olhos no chão, perante a gigante dor que sentíamos. Nem sabíamos muito bem o que dizer na verdade. Era grande demais para assimilar, para absorver em curto espaço de tempo.
Recebemos um telefonema da nossa outra prima médica, a Patrícia, que a soluçar me disse que estava a caminho da Estefânia e desligou. Deixa-a vir. Precisava de alguém que fala-se a língua dos médicos e nos ajudasse, nos traduzisse o que se passava. Que nos desse apoio. E foi bom ter contado com ela, muito bom mesmo.
Decidimos que iríamos contar a nossa família presencialmente e a mais alguns amigos próximos e não iríamos expor a mais ninguém nesta altura para nos resguardarmos. Foi a melhor decisão que tomamos, tivemos umas horas de paz sem ninguém a fazer perguntas.
Subimos novamente e começámos a arrumar tudo. Queríamos sair dali o mais rápido possível, já não aguentava os olhares, as perguntas, as palavras de força quando ainda não tinha processado o diagnóstico.
Chegou a prima Patrícia e falou novamente com a médica, a sós, não fiz questão de estar presente.
Pegamos na Matilde e voamos dali com a condição de voltar mais tarde para recolher os exames para apresentar no IPO no dia seguinte.
Começava a parte mais difícil das más notícias, ter que destruir o coração de quem mais amamos e termos que repetir vezes sem conta as mesmas palavras, aquelas que cada vez que as pronunciamos nos vão cortando ainda mais o coração: "A Matilde tem um cancro".
A Avó Fátima não parava de ligar, pelo que tive que lhe dizer ao telefone, ficou em lágrimas. Foi um telefonema curto.
Primeira paragem: Avô João.
Assim que estávamos a chegar, cruzam-nos com ele. E as lágrimas correram pelo meu rosto. E disse-lhe entre dentes que a sua Má tinha cancro.
Foi doloroso, muito mesmo. Não nos abraçamos porque não tínhamos força para dar um ao outro. Eu precisava de colo e o avô de força.
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A Tia Vanessa já sabia, pois eu liguei para que a avó Eduarda tomasse um comprido antes e ela não me deixou desligar sem eu lhe dizer o que se passava. Sempre optimista deu-me muitas palavras de força.
Segunda paragem: casa do avô Luís
A avó Eduarda não soube da notícia logo, porque o seu coração podia não aguentar.
Depois fiz questão de ir à Tia Natália contar, foi desolador para ela, mas aguentou o embate, de dura que é aquela mulher!!
Fui para casa e recebi a porta de casa a visita da Isabel, que nada mais fez que me confortar com o seu olhar experiente e sábio. Foi bom! Muito bom. E o seu abracinho foi milagroso.
O Tio Nuno assim que soube mandou SMS a dizer que estava a caminho de nossa casa, mas nós pedimos o mesmo à todos: espaço. Não sabíamos o que nos esperava daquele dia para a frente e queríamos espaço para estar os 5, todos juntos, sem mais ninguém. Apenas nós, a Família Migalhinha.
Poupamos a notícia à Família Almeida, a prima Inês fazia anos.
E ficamos no miminho a noite toda, a namorar-nos, a matar saudades, a ir muitas vezes a varanda respirar fundo muitas vezes.
Foi o dia mais longo das nossas vidas, o mais duro, o mais pesado, o que mais emoção teve, o que mais medo carregou.
Foi o único dia que me permiti chorar, soluçar, desesperar.
Foi o dia que mudou as nossas vidas para sempre.
O dia 10 de Abril de 2019
A alegria da Matilde durante o seu internamento na Estefânia |
E a Matilde está connosco um ano depois! Cheia dela própria , a sua carinha reflete o amor e a força que lhe dão ! As asas continuam à tua espera meu amor ! Por isso um ano depois em vez de choro (apesar de estar desfeita em lágrimas) devemos celebrar todas as vitórias que juntos conseguiram! Parabéns Guerreira
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